Escravizados planejavam rebelião no Natal de 1831

Escravizados planejavam rebelião no Natal de 1831

Muitos brancos da vila apoiaram a tentativa de revolução contra a elite ligada ao tráfico humano.
Dia 20 de novembro de 1831, o Aurora, que rumava para o Rio Grande do Sul, é trazido pelo vento de volta à Praia do Itaguá. O capitão da embarcação tinha uma mensagem urgente para o novo juiz de Paz da Vila de Ubatuba: os homens mais poderosos do município corriam risco de morte. Escravizados pretendiam atacar os homens mais ricos da cidade, quando estivessem no mesmo lugar e na mesma hora: na missa de Natal, na Igreja Matriz. Os rebeldes se apropriariam dos bens dos senhores e conquistariam a liberdade. Entre os revolucionários havia ao menos uma dezena de homens brancos livres, inclusive militares, e eles já tinham armas, pólvora e munição.

Sozinha e isolada por 40 anos
Vamos entender um pouco do contexto histórico. Entre 1787 e a década de 1820, Ubatuba viveu um período de Isolamento econômico, antes de voltar a crescer vertiginosamente com a vinda de Investidores portugueses, franceses e brasileiros, que chegaram para atuar nos ramos de exportação de café e importação de escravizados. Esse Intervalo de quase 40 anos começou quando o presidente da província de São Paulo, Bernardo José de Lorena, determinou que todas as embarcações que partissem da província deveriam passar pelo porto de Santos. Para a economia açucareira de Ubatuba, Isso foi desastroso, pois o longo desvio obrigatório ao sul tornava os produtos ubatubanos muito mais caros no mercado do Rio de Janeiro. Assim, dos mais de 20 engenhos que existiram aqui no século XVIII, restavam só quatro no início do século XIX.

Durante essas quatro décadas, as roças de Ubatuba produziam para a própria subsistência e para trocas na própria região. Só vendia pra fora, a bordo de canoas, o parco excedente de farinha, toucinho, feijão e mandioca. O que para os negócios dos senhores foi tempo de decadência, para os negros pôde ser visto como um alívio, um abrandamento da violência e segregação. Com a economia voltada para o consumo Interno, fora da lógica de acumulação capitalista, o número de horas de trabalho diminuiu nessas décadas. Poucos senhores conservaram grupos maiores de escravizados. A maioria dos donos de escravizados acabava por ir trabalhar na roça ao lado dos cativos e muitos acabaram por libertá-los. O número de mestiços aumentou, sinal de que as relações inter-raciais estavam se tornando mais próximas. Mas, com a reabertura dos portos e os novos empreendedores, tudo Iria mudar rapidamente às vésperas dos anos 1830.

A fuga dos franceses para Ubatuba
A história de Ubatuba está ligada à da Ilha de São Domingos, onde ficam os atuais Haiti e República Dominicana, próxima a Cuba e Jamaica. No século XVIII, a ilha era dividida entre franceses e espanhóis. Os colonizadores tinham ganhos estratosféricos, pois submetiam seus numerosos escravizados ao mais pesado regime de trabalho das Américas. Ali a expectativa de vida de um africano era de três anos após a chegada. Entre 1791 e 1804, São Domingos foi palco de um grande levante de escravizados sem precedentes. Foi o único caso no “Novo Mundo” em que africanos e descendentes conquistaram a Independência e o fim da escravidão por meio de uma revolução.

Rebeldes incendiaram as fazendas e as casas de seus senhores. Muitos dos franceses conseguiram escapar da fúria dos revolucionários negros e vieram investir seu tesouro no Brasil, uma parte deles, em Ubatuba. Eles trouxeram o café e técnicas para clareamento de açúcar. Os mais ricos se tornaram sócios de traficantes de escravizados no sul da vila e fazendeiros em novas áreas abertas por machados em punhos negros. A lembrança da revolução em São Domingos deixava a nova elite de Ubatuba preocupada que isso também ocorresse no Brasil. A França, a Espanha, os EUA e o próprio Brasil jamais deixaram o Haiti prosperar nem ter paz. O objetivo era evitar que pudesse inspirar escravizados de outras colônias. Nos últimos séculos não foram poucas as intervenções externas, como sabotagens, bloqueios, invasões, promoção de golpes e “missões de paz”.

A descoberta do possível motim
O juiz de Paz, João Gonçalves Pereira, tinha chegado a Ubatuba no dia 1831. Pela correspondência trocada entre ele e o presidente da província, sabemos que sua missão era “prestar todas as cautelas por meio de huma exacta polícia a fim de extirpar toda e qualquer insurreição da escravatura”. Por isso ele não deve ter estranhado quando o fazendeiro Antônio Joaquim da Costa Brandão o procurou para dizer que desconfiava que seus escravizados estavam tramando alguma coisa.
Os oito negros suspeitos foram açoitados para que confessassem o suposto plano, mas nada revelaram. Brandão decidiu vendê-los em um lugar distante, o Rio Grande do Sul, para não levarem a cabo nenhuma rebelião.

O senhor tinha direito de vida e morte sobre os escravizados, Além de explorar a força de trabalho e de os submeter a castigos físicos, os fazendeiros podiam vender seus cativos quando bem entendessem. Ser vendido para longe, para muitos era suplício mais doloroso que o próprio chicote, pois o afastava para sempre de filhos, e outros amores. Quando os escravizados suspeitos já estavam em alto mar, um passageiro livre do Aurora ouviu eles conversando sobre a insurreição, lamentando estarem sendo os castigados apesar de serem outros os mentores do motim. A testemunha alertou o capitão da embarcação, que decidiu voltar a Ubatuba e avisar a Vila. O Juiz vai ao Aurora e interroga novamente os escravizados de Brandão, que revelam o nome dos cativos que os convidaram a tomar parte no ataque, Benedito e Belizário. Vicente Xavier de Carvalho, Sargento do 6º Batalhão de Caçadores, que forneceria a munição.

É apontado como líder António Fernandes Pereira Corrêa, o misterioso forasteiro que vivia na casa do vigário Emídio José Fernandes. Nas palavras do juiz ao presidente da província, Corrêa era “pessoa de péssimo comportamento, que com os nomes de Pátria e Liberdade, que falsamente apregoa, tem saído indispor-se com não pequena parte do povo deste município”. Seria ele Revolucionário? Alguém a quem quiseram incriminar? Alguém que queria usar escravizados para fins políticos pessoais? Não tenho certeza.

O que teria motivado a tentativa de rebelião
Do pouco que consegui descobrir sobre o passado de Antônio Fernandes Pereira Corrêa, o mais relevante é que até 1830 tinha negócios no Rio de Janeiro e que uma década antes, em 1821, quando o Brasil ainda pertencia a Portugal, apoiou financeiramente as tropas que forçaram e rei Dom João VI a aceitar uma constituição limitando seus poderes, conforme exigia a Revolução do Porto. Mais importante que entender a ideologia do forasteiro, é descobrir porque tantos escravizados e livres de Ubatuba estavam dispostos a participar do ataque Artigos de jornal, ofícios e as correspondência entre o governo provincial e a Câmara de Ubatuba, mostram que o que de fato incomodava o povo da Vila eram os abusos da elite agrária escravocrata.

Plantadores de café de Ubatuba e do interior do Estado queriam exportar sua produção e exigiam estradas melhores. O problema é que sempre exigiam que a população simples da Vila, como trabalhadores urbanos e pequenos agricultores, pagasse a conta das obras que beneficiariam a poucos, a começar pelos grandes proprietários cujas terras margeavam as estradas. Depois das estradas, veio a ponte sobre o rio Paraibuna entre Ubatuba e São Luiz Como em certos modelos de “Parceria Público Privada” de hoje em dia, os custos ficavam.com a público e os lucros.com agentes privados. Para os negros nunca faltou motivo para rebelião. Mas havia uma mágoa recente a mais: os senhores foram os primeiros a profanar o sagrado Em 1830, brancos invadiram a novena de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e espancaram os devotos.

Foto antiga mostrando a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e ao fundo a Igreja Matriz

Em 1831 havia também motivos a mais para acreditar na libertação: 1. Em outubro a província de São Paulo aboliu a escravidão Indígena. 2. A proibição do tráfico negreiro fez multos escravizados acreditarem que logo eles seriam libertos. 3. Com as disputas entre Dom Pedro l e seu irmão Miguel pelo trono português, se espalhou o boato que Dom Miguel libertaria os cativos se vencesse e reunificasse os tronos do Brasil e Portugal.

Penas diferenciadas
Sargento Vicente. Xavier, por ser militar, não podia ser julgado pela justiça comum. Os brancos que se envolveram no plano, mas que tinham terra, ficaram em prisão domiciliar. Só Corrêa, os negros e três brancos pobres foram presos. Conseguiram fugir, provavelmente com ajuda de companheiros que abriram um rombo na cadeia, usando explosivos. Perdi o rastro de Correa, lá os negros apareceram em anúncios de jornal com ofertas de recompensa pela recaptura.

Os negreiros e as estradas
Em 20 de fevereiro de 1830, um fazendeiro de Rio Claro escreve um artigo ao Jornal O Farol Paulistano, onde reclama que estava “cansado de sofrer prejuízos” desde que a Câmara de São Sebastião proibiu o embarque na freguesia de Caraguatatuba, obrigando os produtores de café a fazer viagens quatro léguas mais longas até Ubatuba, em estradas péssimas. Por essa época começava a funcionar o mega esquema de desembarque de escravizados entre Ilhabela, a freguesia de Caraguatatuba e o extremo sul de Ubatuba. O complexo, incluía a fazenda do Barão da Vila Nova do Minho, o engenho São Pedro de Alcântara e a “fábrica de vidros”, que servia de fachada para os reais negócios do negreiro João Alves da Silva Porto. Nos pontos de vigia, acendiam piras para avisar os contrabandistas, por melo da fumaça, sobre a presença de navios ingleses que combatiam o tráfico.

Muitas autoridades colaboravam com o tráfico humano, por isso não é estranho que a Câmara de São Sebastião (da qual Caraguatatuba fazia parte) não quisesse pessoas de fora frequentando aquelas águas, mesmo que isso significasse arrecadar menos Impostos e taxas dos exportadores de café. Isso teria sido um fator que contribuiu para a necessidade de se reformar as estradas até a região central de Ubatuba. Em 1845, o Parlamento da Inglaterra aprova a Bill Aberdeen e a Marinha britânica passa a capturar os navios negreiros, levar os cativos de volta à África e ficar com as embarcações. A Lei foi aprovada porque os Ingleses estavam cansados de ver os traficantes dando sempre um jeitinho de escapar mesmo quando apreendidos e julgados no Brasil.

Em 1850, os Ingleses montam uma base na Ilha dos Porcos (atual Ilha Anchieta). No mesmo ano, o ministro da justiça, Eusébio de Queirós cria uma nova lei contra o tráfico, acabando com com as brechas da lei de 1831 e endurecendo contra os traficantes. A quadrilha de Ubatuba já não contava mais com a proteção dos ministros marqueses de Maceió, Inhambupe e Baependi, que já tinham morrido (1834, 1837 e 1847). Era o começo do fim da “fábrica de vidros”.

O levantamento e investigação desta história
Para Investigar essa História, busquei ajuda do historia dor Ricardo Figueiredo Pirola, professor do instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP e autor da premiada tese: “Escravos e rebeldes nos tribunais do império: uma história social da lei de 10 de junho de 1835”, publicado pela editora do Arquivo Nacional. O livro ajuda a compreender melhor um período conturbado da história do Brasil, marcado por instabilidade politica, recrudescimento da violência contra os escravos e muitos levantes e insurreições.

Pirola me ajudou a ter acesso a documentos relativos ao plano de insurreição, encontrados no Arquivo Público do Estado, como correspondências entre autoridades, o inquérito policial, entre outros. Pirola forneceu ainda seus valiosos apontamentos sobre os documentos. Busquei também informações em outras fontes. No repositório digital de documentos e na rede de hemerotecas da Biblioteca Nacional, busquei referências a Ubatuba e aos acusados para compreender as “tretas” da vila que vivia rápidas transformações.

Todas essas fontes foram preservadas em arquivos fora de Ubatuba. Sinto que tentaram apagar muitas histórias por aqui. Quanto aos documentos que pude pesquisar, cabe lembrar que cada linha (de jornal, correspondência ou até mesmo a tomada dos depoimentos dos negros) for escrita por mãos brancas e poderosas, que podem te: omitido ou mesmo acrescentado o que lhes fosse conveniente.

Fonte de Informações: por Leandro Cruz – Jornal Informar Ubatuba

A História por Zizinho Vigneron (professor e historiador) – A Revolta da Missa do Galo
Um Sonho de Liberdade dos Negros”. Adão, Belisário, Benedito, Elias, Iná- cio, Joaquim, Manoel, Teodoro e muitos outros, todos negros e escravizados em Ubatuba no ano de 1831, são alguns dos protagonistas de uma história que necessita ser melhor pesquisada para que possamos compreender e entender melhor o processo da escravização em Ubatuba. Foi uma rebelião com características urbanas e que aproveitamos esse espaço para pincelarmos algumas informações que possuímos. A Revolta da Missa do Galo em Ubatuba foi preparada para acontecer no dia do Natal, por ocasião da popular Missa do Galo, quando os negros cercariam as ruas e portas da Igreja Matriz onde participariam do ritual os poderes constituídos, bem como os proprietários de terra e os homens abastados da época. Apesar de planejada para ocorrer na noite de 24 para 25 de dezembro, porém abortada.

Adquirir armas, bem como não gastar suas economias com alforria, pois necessitavam delas com sua libertação que viria após a rebelião, faziam parte da estratégia. Desse movimento, também participaram brancos proprietários de terra e alguns com poderes de mando no município, o que leva a crer que a manifestação tinha, para os negros, o sonho da liberdade, enquanto para os brancos envolvidos, questiúnculas políticas locais a serem melhor compreendidas.

Eleutério Alves Martins, António Alves Martins, João José dos Passos Tombar, José Joaquim Lopes, Joaquim Pires, o ajudante Antônio dos Santos Mesquita, António Egídio da Cunha e seu pai, o alferes Antônio Egídio da Cunha foram os principais brancos envolvidos nessa rebelião. A denúncia da revolta levou a prisão de brancos e negros, porém, os brancos que tinham maior prestigio no município, ou seja, o ajudante Antônio dos Santos Mesquita, o alferes Antônio Máximo da Cunha e seu filho Antônio Egídio da Cunha tiveram prisão domiciliar, enquanto os outros brancos foram para a cadeia e os negros cadela e Pelourinho Exemplos disso ao corriqueiros dentro da história da escravização no Brasil e em Ubatuba não fugiu à regra. Não é em vão que, em 1831, Antônio Joaquim da Costa Brandão mandou três escravos que julgava perigosos ao Rio de Janeiro, ou seja, Inácio, Manoel e. Teodoro, os mesmos que haviam sido acusados de participarem da rebelião da Missa do Galo.

Eram constantes e comuns as ligações entre os brancos proprietários de escravizados e a classe dirigente da politica local ligada ao contrabando deles Quando os proprietários sentiam algum clima de revolta, ameaçavam os escravos sobre vende-los a lugares distantes. Em 1831, sentindo o clima de instabilidade e revolta, alguns fazendeiros de Ubatuba ameaçaram seus cativos de serem negociados no Rio Grande do Sul, As lutas dos escravizados em nossa cidade não se deram apenas em 1831. Em 1825 houve uma tentativa de levante de escravos nas fazendas do norte da então Vila Em 1827, outra rebelião foi planejada, novamente sem êxito, contudo, o clima de tensão continuava latente.

A revolta da Missa do Galo, porém, foi a maior insurreição de escravizados da história de Ubatuba. Em abril do mesmo ano, um negro liberto clamava na praia da Alvorada (atual Cruzeiro ou Iperoig) que D. Miguel, viria “arrasar tudo e dar carta de alforria aos negros Tal fato se explica pela renúncia de D. Pedro I ao trono brasileiro e ao clima de instabilidade politica que o pais atravessava. Uma especulação de que D. Miguel, irmão de D. Pedro, deveria assumir o trono do Brasil, chegara aos ouvidos daqueles que viam na figura de D. Pedro o símbolo da escravização,

O clima de tensão era bastante acentuado em 1831, mesmo antes do aborto da revolta da Missa do Galo. Antônio José Pereira Vieira, Juiz de Paz de Ubatuba, comunica ao presidente da Província de São Paulo que: “ordenei que escravo algum saísse da Vila ou entrasse de sitio oυ fazenda e de uma para outras, sem que levasse cédula de seu senhor, feitor ou administrador datada e assinada e seus sinais e tempo que devia demorar ou voltar. Acreditamos que essa narrativa é preciosa e que contém informações que possam colaborar para um aprofundamento do Natal de 1831: A Revolta da Missa do Galo em Ubatuba Um Sonho de Liberdade dos Negros Escravizados.