Ubatuba por Wladimir de Toledo Piza

Ubatuba por Wladimir de Toledo Piza

Ubatuba foi, no início do século 19, a cidade mais importante do Estado de São Paulo. Suas rendas eram superiores às da capital paulista. Uma classe muito rica, de grandes comerciantes, mantinha transações com países da Europa, aos quais remetia café, e dos quais importava todos os produtos industrializados que o Brasil ainda não produzia, que eram vendidos para todo o Interior do Estado. Seu porto marítimo era o mais movimentado de São Paulo e por ele o Brasil exportava as grandes safras de café que o Vale do Paraíba produzia, desde Bananal, o maior, como Guaratinguetá, Pindamonhangaba, Taubaté e São Luiz do Paraitinga.

A Av. Iperoig nem existia e não tínhamos o “Monumento” na Praça da Matriz, erguido e inaugurado em Comemoração aos 300 anos de  fundação de Ubatuba  em 1937. Imagem extraída do Blog Ubatubense

Com a riqueza veio o luxo e grandes casarões foram construídos por arquitetos estrangeiros, com paredes e forros decorados a ouro por pintores famosos, que a Europa nos mandava a preços elevadíssimos. O intercâmbio comercial trouxe para Ubatuba gente de todos os pontos do mundo. Vieram os ingleses Grace, cujo nome foi aportuguesado para Graça, os franceses Giraud, os suíços que acabaram criando até um incidente diplomático, sangues novos em busca de ares novos, de terras novas e grandes oportunidades. Seus descendentes ainda por aqui perambulam, ostentando nomes dos mais sonoros: os Vigneron de La Jousse Landière, os Bourget e os Robillard de Maringny. estes da mais fina nobreza da França. Chegaram com a companhia de estradas de ferro que iria levar seus trilhos, locomotivas e vagões, desde Ubatuba até Taubaté.

Sim. Porque, com a construção, pelos paulistas, de uma estrada de ferro ligando São Paulo a Cruzeiro e com a São Paulo Railway a atual Santos Jundiaí a competição de preços no frete do transporte de café acabaria por derrotar o comércio de Ubatuba. O café, que descia até aqui em lombo de burro, em tropas de centenas de muares por dia, passaria a viajar por trem desde a cidade de origem até o porto de Santos e o frete ficaria muito mais em conta.

Ferrovia Taubaté Ubatuba
Ferrovia Taubaté Ubatuba

O grande comerciante de Ubatuba viu o problema que se criava para sua terra e seus negócios e viu também a solução: para derrotar um transporte ferroviário barato, só um outro transporte mais barato e este era a estrada de ferro direta, do porto de Ubatuba para a região produtora de café, o Vale do Paraíba. Uma lei do Império, a Lei Mauá, dava aos que se propusessem construir ferrovias, uma garantia de juros para capital aplicado. Lá foram eles à França e trouxeram a companhia de que fazia parte o Robillard de Marigny e começaram a estrada de ferro em Ubatuba, no ponto onde hoje há o trapiche e o frigorífico para peixes – ponto que eu conheci com o nome da estrada de ferro: “Empresa”. E, cortando na pedra, abriram a passagem para os trilhos até o Itaguá; dali, quase em linha reta, até a Serra do Mar, onde começaram a cavar o primeiro túnel. Em Taubaté, no outro extremo, também começou a estrada com trilhos até a estação chamada “Fortaleza”. Um dia, esses trilhos que passariam por Redenção e Natividade da Serra, se encontrariam, e o café, em trajeto muito mais curto, desceria do cafezal para o porto de mar.

O Brasil, porém, já era o país dos imprevisíveis na política, na economia e nos rumos. A revolução de Gumercindo Saraiva, que se levantou no Rio Grande do Sul e marchou para o Rio de Janeiro, para tentar derrubar o governo de Floriano Peixoto, despertou ódios terríveis, morticínios que todos desejamos esquecer e atos violentos que tiveram como origem até mesmo boatos. Correu a notícia de que os empresários franceses, da estrada de ferro Ubatuba-Taubaté, eram simpatizantes de Gumercindo Saraiva. E um decreto de Floriano, suspendendo a garantia de juros, levou a “Empresa” à falência. Esta engoliu toda a fortuna dos ubatubenses ricos, que haviam aplicado todo o seu capital na ferrovia. Foi o tiro na nuca. Ubatuba morreu.

Barra da Ilha dos Pescadores -1946 – Imagem extraída de Blog Ubatubense

Os que ainda tinham capacidade de luta, emigraram. Foram para Santos, para o Rio de Janeiro ou para São Paulo, Ubatuba não oferecia mais condições de trabalho e de sobrevivência rendosa. Aqui ficaram os velhos, os doentes, os aposentados e os funcionários públicos. A velha estrada imperial, calçada de matacões de pedra, foi ruindo. A cada grande chuva rodava um barranco ou um aterro. No fim só dava passagem a pedestres ou cavaleiros, que ainda tinham que passar certos trechos a pé e puxando o animal pela rédea. O “naviozinho” do Lloyd Brasileiro ou da Companhia Costeira de Navegação o Aspirante Nascimento ou o Oyapoc portava aqui a cada quinze dias. Paravam ao largo, dentro da baía e apitavam aguardando a canoa que levava e trazia passageiros e cargas. Partindo o navio, Ubatuba voltava à modorra. Cochilava na hora do calor para acordar ao entardecer. E sua gente conversava, contava estórias, repetia lendas, revivendo um passado de glórias já morto na prática, mas cada vez mais vivo nas recordações e no amor dos que haviam permanecido aqui, como sentinelas que se recusavam a abandonar o posto.

Padre Anchieta - ilustração
Padre José de Anchieta faz parte de nossa história

Nenhum país vive sem seu passado. “O passado são as barras em que se apoia o presente para descortinar o futuro”, já dizia um grande pensador. Conheci Ubatuba reduzida a 110 casas, todas mais ou menos em ruínas. O médico do Estado, que me foi apresentado no Hotel Felipe, garantiu-me que Ubatuba acabaria dentro de 10 anos: “eram 120 casas no ano passado; caíram 10. Em dez anos acaba”. Não acabou. A estradinha da serra, reconstruída por ordem do coronel Dilermando de Assis, que a colocou no Plano Rodoviário do Estado; a ligação a Caraguatatuba, que se deve a homens como Gabriel Monteiro da Silva e Caio Dias Batista, e as belezas naturais que Deus lhe deu, garantiram a sobrevida e a nova onda de progresso que hoje impele Ubatuba a um radioso futuro. Por isso mesmo, hoje mais do que nunca, é preciso contar aos que chegam, que há um patrimônio histórico, cultural, de amor e de saudade, que precisa ser conservado em um escrínio intocável e que é a certidão de idade de Ubatuba.

Ciccillo Matarazzo - Biblioteca de Ubatuba
Ciccillo Matarazzo – Ex-prefeito que tornou Ubatuba divulgada no Brasil e no mundo

Aqui chegaram Nóbrega e Anchieta depois de Hans Staden: depois a Condessa de Vimieiro deu terras a Jordão Homem da Costa, açoriano de luta, que veio abrir a cidade. E a cidade viveu com homens como o médico Dr. Esteves da Silva que foi seu deputado à Assembleia Estadual, com o velho Felix Guisard, com o português generoso que se chamou Antônio Miranda, o polonês Swirski e o inesquecível Cicillo Matarazzo. Tudo isso é uma cadeia de recordações. Mas Ubatuba atingiu o clímax das suas reservas humanas com Idalina Graça, a caiçara que Ilhabela nos mandou para ser intermediária entre Deus e a terra tamoia e que fez deste recanto um pequeno altar de fé, de amor, de paz e de grandeza de alma. Ela reconduziu Ubatuba ao amor à Virgem, que Anchieta imortalizou nos seus poemas escritos na areia das praias. Também ela escreveu na areia, mas o que escreveu nenhum mar, nenhum terremoto, nenhum potentado jamais apagará.

Texto de Wladimir de Toledo Piza escrito para o prefácio do livro: “Ubatuba Lendas & Outras Estórias” – Washington de Oliveira
Ubatuba, abril de 1983